Por Pedro Assad e Iara Duque em 20/10/2021
OBRA PARALISADA E AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS ADQUIRENTES DE IMÓVEL NA PLANTA E PARA O MERCADO: DA EVERGRANDE, EM NÍVEL GLOBAL, À ENCOL NO BRASIL.

O QUE A CRISE DA EVERGRANDE NOS LEMBRA SOBRE O CONTEXTO IMOBILIÁRIO BRASILEIRO E OS DIREITOS DOS ADQUIRENTES DE UNIDADES EM EMPREENDIMENTOS PARALISADOS?

 

No último mês, jornais de todo o mundo noticiaram o temor do mercado e os riscos para o sistema financeiro mundial decorrentes dos problemas da incorporadora chinesa Evergrande, que acumula dívida bilionária.[1]

Fundada em 1996, a Evergrande se tornou uma gigante da construção civil e seu crescimento revela o retrato da ascensão econômica da China nas últimas décadas, especialmente do setor imobiliário, um dos pilares do desenvolvimento e do processo de urbanização do país.

Em 2018, foi considerada a maior incorporadora imobiliária do mundo em valor de mercado e atualmente é a segunda maior incorporadora da China, país com a segunda maior economia do mundo, o que justifica a forte oscilação nas bolsas de valores globais durante o último mês.

Diante do risco de inadimplência da empresa, que acumula uma dívida de cerca de U$ 300.000.000.000,00, existe no mercado mundial o temor de que a crise da Evergrande provoque uma reação em cadeia que, além de afetar o setor imobiliário, provoque instabilidade social, uma vez que, segundo estimativas, 1,5 milhão de chineses já começaram a pagar por imóveis ainda não entregues pela companhia.

Estima-se que a Evergrande possua cerca de 1.300 empreendimentos imobiliários em construção no território chinês, o que justifica, por si só, o temor de investidores e consumidores em uma “quebra” da companhia.

A expectativa para se evitar um colapso da gigante do mercado imobiliário é que o governo chinês, conhecido pelas regulares intervenções estatais na economia baseada no capitalismo de estado, interfira na situação.

A insegurança econômica e o risco causado pelo caso Evergrande podem refletir diretamente na economia brasileira e no segmento imobiliário do país, que, além dos possíveis impactos negativos das incertezas que pairam sobre a China, começa a sentir os efeitos da crise causada pela pandemia e a instabilidade política, o aumento da inflação e a tentativa do governo em frear a disparada de preços com o aumento da taxa básica de juros (Selic), atualmente em 6,5% a.a., com expectativa de chegar a 8,0% a.a. até o fim de 2021.

O aumento da Selic faz com que a oferta de crédito fique mais restrita, impactando na demanda por imóveis e na construção civil, principalmente no setor de incorporações imobiliárias, que dependem do mercado aquecido e da disponibilidade de crédito para financiamento dos empreendimentos.

Em momentos como este, em que a credibilidade do mercado imobiliário é colocada à prova, inevitável não se lembrar da crise no mercado imobiliário brasileiro desencadeada pela decretação da falência da incorporadora Encol S/A, no ano de 1999, que lesou milhares de adquirentes que investiram suas economias em incorporações que, em muitos dos casos, jamais chegaram a ser concluídas.

O modelo de negócio da Encol dependia basicamente de um constante fluxo de caixa e da demanda ininterrupta por imóveis, pois os recursos de um empreendimento serviam para financiar outros. Ou seja, a Encol se valia da especulação imobiliária para lançar novos empreendimento com dinheiro que não possuía, sem qualquer garantia para os investidores.

Quando a oferta de imóveis superou a demanda, o modelo se tornou insustentável e a empresa não conseguiu honrar seus compromissos nem concluir os empreendimentos em construção, e faliu deixando prejuízos imensuráveis à sociedade e ao mercado imobiliário.

À época, a Encol S/A era a maior construtora e incorporadora do país, empregando mais de 20 mil pessoas e com mais de 100 mil imóveis construídos, e sua falência gerou a paralisação de centenas de obras por todo país e a instabilidade em todo mercado, levando a profundas discussões entre doutrinadores, juristas e legisladores sobre como aperfeiçoar as regras relativas a incorporações imobiliárias e assegurar direitos aos adquirentes de imóveis em empreendimentos em construção no caso de falência, insolvência civil ou abandono da incorporadora.

O patrimônio de afetação surge neste contexto, como proposta para conferir maior segurança jurídica aos adquirentes de unidades autônomas compradas na planta ou em construção e, ainda, retomar a confiança do mercado nesta modalidade de investimento.

Incluído na Lei nº 4.591/64 por meio da Lei nº 10.931/2004, o instituto tem o objetivo de assegurar direitos aos adquirentes de unidades imobiliárias em empreendimentos em construção nos casos de falência, insolvência civil ou abandono da incorporadora, na medida em que possibilita que os direitos e obrigações da incorporação se tornem incomunicáveis em relação ao patrimônio geral da incorporadora, para que o empreendimento imobiliário e, consequentemente, as obras que levarão à sua conclusão, não sejam prejudicadas pela má gestão dos ativos da incorporação.

Com a instituição do patrimônio de afetação, pretende-se criar condições para que os adquirentes das frações ideais vinculadas às unidades autônomas a construir não fiquem sujeitos a eventuais percalços financeiros que possam atingir o incorporador, sejam eles decorrentes de má-gestão de seus negócios ou de outros fatores que possam acarretar a insolvência ou falência, ou possam retirar do incorporador as condições econômicas para concluir a incorporação.[2]

Trata-se, portanto, de exceção à regra da responsabilização patrimonial da pessoa jurídica ou da pessoa física (caso a incorporadora o seja), de forma que o patrimônio da incorporação afetada não poderá ser atingido por dívidas contraídas pela incorporadora se não tiverem relação com aquele projeto em específico. Tal blindagem tem por objetivo a consecução do empreendimento, a conclusão das obras e a entrega das unidades aos adquirentes, que é a finalidade e a função social por excelência da incorporação imobiliária. Assim, em caso de decretação da falência ou da insolvência civil da incorporadora, o patrimônio de afetação não fará parte da massa concursal.

No entanto, por conta de um “lobby” das incorporadoras na aprovação das alterações do que veio a se transformar na Lei nº. 10.931/2004, o regime da afetação patrimonial – que deveria ser um benefício e uma garantia para os adquirentes – acabou constituindo-se como uma faculdade atribuída ao incorporador, sujeita à sua discricionariedade, e não como uma obrigatoriedade, como se vê da redação inicial do art. 31-A da Lei nº 4.591/64.

 

Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.

 

Para incentivar a adesão ao regime de afetação, foi oferecido um Regime Especial Tributário (RET) às incorporadoras que aderissem ao instituto, o que unificaria o pagamento dos tributos federais (IRPJ, PIS/PASEP, CSLL e COFINS), nos moldes do Simples Nacional, com alíquota reduzida para 4% sobre a receita mensal auferida, bem vantajosa para as Incorporadoras em comparação ao tradicional regime de Lucro Presumido.

Todavia, ainda assim, em muitos casos incorporadoras lançam empreendimentos já objetivando o desvio de patrimônio de um empreendimento para outros, frequentemente lançados em seguida pelo mesmo grupo, e por isso, preferem arcar com tributos mais altos e não adotar o regime do patrimônio de afetação.

 

Mas, afinal, o que fazer se o imóvel comprado na planta não for concluído?

Adquirir um imóvel na planta geralmente oferece aos adquirentes melhores preços e condições de pagamento, mas também os riscos inerentes ao próprio negócio, como o atraso na entrega do imóvel, a insolvência ou falência da incorporadora e até mesmo o abandono das obras sem a sua conclusão. Nestes casos, a legislação prevê algumas possibilidades para os adquirentes fazerem valer seus direitos.

Independente da opção pela instituição do patrimônio de afetação e uma vez configurada a incorporação mediante a entrega de unidades em prazo determinado, a Lei 4.591/64 estabelece uma série de responsabilidades (civis e criminais) à incorporadora vinculada, valendo, para fins da abordagem aqui proposta, destacar as repercussões civis da paralisação injustificada ou simples abandono da incorporação pela incorporadora responsável, sem a conclusão do empreendimento.

Em caso de paralisação ou abandono das obras por mais de 30 dias, sem justa causa, poderão os adquirentes exercerem o seu direito ao desfazimento do negócio (de aquisição das unidades), na forma do art. 395 do Código Civil e do art. 43, II da Lei nº 4.591/64 ou, ainda, se notificada a incorporadora e ela permanecer inerte, a sua destituição, na forma do art. 43, VI da Lei nº 4.591/64, caso em que os adquirentes podem, se assim deliberarem por maioria absoluta, gerir por conta própria (através de seus representantes) a referida incorporação.

A destituição é uma das sanções civis possivelmente aplicadas à incorporadora que esteja em mora ou inadimplente com suas obrigações e possibilita que, nessas hipóteses e seguindo determinados procedimentos formais, os adquirentes possam, coletivamente, retomar a obra, preservando seus direitos ou minimizando os prejuízos decorrentes do atraso ou do abandono perpetrado pela incorporadora.

O procedimento formal previsto na legislação prevê a notificação judicial da incorporadora para retomada das obras em até 30 dias. Descumprida a notificação, os adquirentes deverão convocar assembleia geral para deliberação da destituição da incorporadora, pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes (excluindo-se do cômputo as unidades “estoque” não comercializadas pela incorporadora). Aprovada a destituição, a ata da assembleia é levada a registro no Cartório de Títulos e Documentos e, posteriormente, a destituição é averbada na matrícula imobiliária do Cartório de Imóveis em que foi registrado o memorial de incorporação.

Porém, a destituição da incorporadora, por si só, não transfere automaticamente os ativos daquela incorporação para a coletividade de adquirentes, pois, em casos em que não há o patrimônio de afetação instituído previamente, os bens e ativos do empreendimento (unidades “estoque” não vendidas e créditos de saldo devedor a receber, especialmente) continuam formalmente vinculados à incorporadora e não à incorporação imobiliária em particular.

Havendo o patrimônio de afetação instituído e destituída a incorporadora, os adquirentes se sub-rogarão nos direitos e obrigações da incorporação e deliberarão, entre si, sobre a continuidade das obras ou liquidação do patrimônio de afetação, com a quitação do passivo relativo à incorporação e rateio do saldo credor remanescente entre os adquirentes, na proporção do que foi investido por cada um, conforme determina o art. 43, VI e VII da Lei 4.591/64.

No entanto, quando o incorporador não opta pela instituição do patrimônio de afetação, a coletividade de adquirentes enfrenta a difícil missão de concluir a obra atrasada ou abandonada sem recursos pré delimitados ou vinculados que viabilizem a continuidade das obras e o término do empreendimento, o que pode muitas vezes impedir a efetiva retomada do empreendimento, fazendo com que os adquirentes tenham que pleitear a intervenção do Poder Judiciário para buscar eventual indenização.

Por isso, é importante que o adquirente que pretenda investir em um imóvel na planta tenha ciência dos riscos e tome certos cuidados, que envolvem desde a análise da situação financeira e do nível de endividamento da incorporadora/construtora, bem como o modelo de negócio e as regras contidas no memorial de incorporação, inclusive e especialmente em relação à instituição do patrimônio de afetação.

 

[1] Neste sentido, é a reportagem da CNN: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/problemas-de-inadimplencia-do-setor-imobiliario-na-china-se-aprofundam-com-evergrande/> Acesso em 01/10/2021

[2] SILVA, José Marcelo Tossi. Incorporação Imobiliária, 1ª edição, São Paulo, Editora Atlas, 2010, p. 173.

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